Caipira Revolucionário

06/11/2009 14:30 – Revista da Cultura – Livraria

Caipira Revolucionário (Click para ver a notícia original)

O ato mais revolucionário da pintura do século 18 no país foi realizado por um caipira que resolveu retratar o homem de sua terra. Trata-se da obra do pintor José Ferraz de Almeida Júnior, que nasceu em Itu, em 1850, e se consagrou com obras como Caipira picando fumo e Violeiro.

Para Nereide Schilaro, autora do livro José Ferraz de Almeida Júnior, a infância em Itu foi um período fundamental na formação do artista. “As relações familiares, o ambiente, as imagens e os sons desse período nos marcam para sempre. Com Almeida Júnior, não foi diferente”, defende a escritora.

Almeida Júnior era filho de um fazendeiro que produzia açúcar, mas, com a Lei do Ventre Livre, o número de escravos caiu e a propriedade passou a dar prejuízo. A família se mudou para a cidade e o pai do artista passou a pintar paredes e cartazes para sustentar a prole. Sem querer, forneceu os instrumentos de que o filho precisava para revelar seu talento: tinta à vontade e carvão para desenhar.

Logo passou a aceitar encomendas de retratos para ajudar no orçamento da casa. Também pintava temas religiosos e o padre da paróquia de Itu teve uma iniciativa que mudou toda sua vida: arrecadar dinheiro entre os fiéis com o intuito de enviá-lo para estudar na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Lá, ele teve aulas de pintura histórica com Victor Meirelles e de desenho com o francês Jules Le Chevrel.

O Imperador Dom Pedro II, em visita à academia, se impressionou com o talento do melhor aluno da turma e, quando Almeida Júnior se formou, ele lhe concedeu uma bolsa para estudar em Paris.

Depois de ser aluno do famoso pintor francês Alexandre Cabanel, Almeida Júnior retomou para o Brasil e voltou a Itu. Na França, o contato com as obras de artistas de vanguarda ajudou a formar o conceito do pintor sobre arte. “A pintura realista de Courbet e Manet, que elevou o realismo nas obras e serviu de caminho aos jovens impressionistas, influenciaram-no a ponto de ele realizar obras com temática regional, uma novidade para o ambiente artístico no Brasil daquele tempo”, acredita Nereide.

Já para a antropóloga Daniela Perutti, autora de uma tese de mestrado elaborada na Universidade de São Paulo (USP) sobre a corporalidade nas obras de Almeida Júnior, o pintor dialoga, principalmente, com as obras dos realistas Courbet e Millet. Ela acredita que a representação do caipira na obra de Almeida Júnior é similar à figura do índio nas telas de Victor Meirelles. Ambos eram vistos como um tipo de fundador da pátria e como símbolos da natureza pura do interiorano. “O caipira é um remanescente do bandeirante que se fixou na terra. São Paulo buscava uma identidade, era uma cidade moderna ainda embrenhada no rural e a figura do caipira legitima o interior por oposição ao litoral”, explica a antropóloga.

A sociedade paulista passava por grandes mudanças com a chegada dos imigrantes, o crescimento das cidades e a riqueza gerada pelo café. A obra de Almeida Júnior ajudou a formar um repertório imagético que ilustra a cultura caipira. Daniela ilustra esse fato narrando sua experiência pessoal na sala dedicada às obras do ituano na Pinacoteca do Estado de São Paulo. “Já estive lá com muitas pessoas diferentes e várias relatam a sensação de já terem visto aquilo em algum lugar, mesmo sem nunca terem estado lá”, relata. Outra questão que chama muito a atenção da antropóloga nos quadros é a luz. “O Almeida Júnior cria uma atmosfera que parece uma fornalha, ele faz do sol o grande agente. O sol age sobre a pele do caipira, que é como se fosse feita da mesma substância do chão de terra.” Para Daniela, isso tem a ver com o discurso positivista, muito em voga na época. “É como se o sol reduzisse o homem a um produto do meio”, define. A passividade do caipira em relação ao sol é contraposta, do ponto de vista da estudiosa, à solidez dos corpos, que seriam uma forma adotada pelo pintor para demonstrar a força dos personagens.

Pedro Xexéo, curador do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (MNBA), tem uma visão diferente das obras do pintor. “As características da obra de Almeida Júnior que mais me chamam a atenção são a primorosa técnica que ele adquiriu na Europa, além do refinado tratamento formal que ele imprimia em suas pinturas. Era um talentoso desenhista e tratava a cor com maestria”, admira-se.

Esse conjunto de características fez do pintor um artista admirado entre grupos muito diferentes, até mesmo inimigos entre si. “Os naturalistas o viam como caipira, e o apoiavam. Monteiro Lobato vai muito nessa linha”, afirma Daniela. A crítica da época também elogiava Almeida Júnior e os modernistas, que tinham um posicionamento crítico em relação aos acadêmicos, admiravam o ituano. Pedro Alexandrino, Oscar Pereira da Silva e Benedito Calixto, entre outros pintores da época, foram influenciados pelo artista. “Após a sua morte, os pintores mais jovens imitaram-no na substituição de temas religiosos e históricos pela temática regionalista e pela representação dos aspectos mais simples da vida interiorana brasileira”, contextualiza Xexéo. Almeida Júnior nunca se interessou pela carreira de professor, apesar de ter sido convidado a lecionar na Academia Imperial das Belas Artes. Morreu em Piracicaba, em 1899, vítima de um crime passional. Manteve um caso por muitos anos com sua prima, mulher casada, e quando o marido dela descobriu, esfaqueou o pintor na praça da cidade.

RECONHECIMENTO

Apesar do reconhecimento e de sua experiência no exterior, o pintor continuou sendo um homem simples, que falava com sotaque carregado e saboroso do interior paulista e nunca deixou de lado sua identidade. Para Nereide Schilaro, isso fez dele um artista coerente. “Ele fazia questão de enaltecer sua linguagem, seu país e sua terra. Segundo, seus biógrafos, ele demonstrou sua autenticidade ao enfatizar sua vontade de voltar ao Brasil dizendo ao Barão do Rio Branco: “Estou morto por me pilhar no Brasil”.

O comportamento o fortaleceu como um pintor genuinamente brasileiro. Não é à toa que o reconhecimento que ele teve em vida é cada vez mais validado pela crítica. Percival Tirapeli, vice-presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), diz que ele é especialmente reconhecido em São Paulo e no Rio, por serem os locais em que ele atuou. Isso, claro, sem falar em Itu e Piracicaba. “Em Itu, há uma semana em homenagem a ele. Para São Paulo, é o pintor que expressou da melhor forma a cultura caipira”, acrescenta Percival.

A legitimação também é confirmada pela presença das obras do artista nos acervos de grandes museus do país, como a própria Pinacoteca do Estado. “O MNBA também possui seis pinturas de Almeida Júnior. Com exceção de Recado difícil, todas foram realizadas em Paris, e estão entre as suas melhores pinturas”, orgulha-se Xexéo.

Para Percival, Almeida Júnior é o artista que deu um novo rumo para a arte acadêmica e daí vem a sua importância. “Ele faz parte do primeiro lote de obras que compuseram a Pinacoteca do Estado. É o mais consagrado pintor paulista que frequentou a Academia tanto no Rio quanto em Paris. Tecnicamente, é o melhor pintor do final do século 19 na capital paulista”, conclui o especialista em arte brasileira.

Nereide Schilaro acrescenta que a obra de Almeida Júnior encanta porque é de fácil entendimento e nos aproxima das raízes populares do Brasil. Talvez uma frase de Liev Tolstói, escritor russo que foi contemporâneo de Almeida Júnior, resuma o legado do pintor. “Pinta atua aldeia e serás eterno”.